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segunda-feira, 26 de dezembro de 2016

Quando a mentira é propagada como verdade: Galileu e Santo Agostinho.

Achei este artigo por acaso e me interessei, porque somos bombardeados com informações “verdadeiras” por todos os lados e nem sempre podemos rastrear a fonte e acabamos por absorvendo essas “verdades”. Aqui, temos dois bons exemplos de frases famosas atribuídas a personagens famosos. Só que não. Isto mesmo, não é verdade! A primeira teria sido dita por Galileu, muito utilizado pelos progressistas para caluniar a Igreja. A segunda teria sido de Santo Agostinho. Contudo, quando são citadas nunca se informa a fonte dessas frases, onde e quando teriam sido ditas por eles. Bom, podemos ver a seguir o porquê. 

A expressão atribuída a Santo Agostinho interessa particularmente porque a vemos sempre na boca (ou teclado) dos arrogantes, os que não gostam de ser “fraternalmente corrigidos” – sobretudo se o interlocutor adota o estilo “sim sim, não não” – e lançam mão dessa expressão “mimizenta” pois... “palavras ferem” (não lhe parece familiar?).  

Meu lema preferido a respeito é: “verdade com caridade, quando possível; senão, apenas e sempre a verdade”. Isto, sim, tem “cara” de católico. 

Essa expressão atribuída a Santo Agostinho, de forte cheiro luterano, é recheada de respeitos humanos. E decididamente não tem a “cara” do Santo de Hipona, que, com certeza, não era “mimizento”. Bom, vindo dos luteranos, o que esperar?... 

Traduzi o texto e mantive só as partes que nos interessam. Quem quiser ler o texto integral (retirei apenas o segundo parágrafo da parte sobre Santo Agostinho), clique no link no fim da página. Acrescentei notas para que o leitor saiba de quem se fala. 




NEM “EPPUR SI MUOVE” É DE GALILEU; NEM “IN DUBIIS LIBERTAS”, DE SANTO AGOSTINHO! 





Mais um mito, desta vez duplo, duas falsas atribuições cheias de segundas intenções.


NEM “EPPUR SI MUOVE” É DE GALILEU...

Ainda pulula na mídia e em autores “progressistas” pouco ilustrados, mas abundantes, a lenda de que Galileu foi condenado à fogueira por sustentar a teoria heliocêntrica(1). A Igreja havia cerceado o progresso da Ciência. Esse assunto merece ser tratado com mais profundidade em outra ocasião. 

Arrancadas da imaginação as chamas da fogueira, o cárcere – onde ele nunca esteve – e as supostas torturas no cavalete(2), ainda permanece enraizada, como uma ato final de rebeldia, o “eppur si muove” – “contudo, se move”, referindo-se à Terra – que supostamente Galileu teria pronunciado imediatamente após sua retratação. 

Esta frase não aparece em nenhum escrito do grande físico, tampouco em nenhum relato dos presentes. E é estranho pois, com o ódio feroz que lhe dedicavam a maioria de seus acusadores, teria sido a desculpa perfeita para convencer a seu amigo, o Papa, para que rubricasse a sentença; algo que ele nunca fez. 

A primeira menção à lenda a encontramos na obra do viajante e escritor italiano Giuseppe Marc'Antonio Baretti(3), mais de 120 anos depois e uns poucos anos antes de os fanáticos da Razão entronizada assassinarem, na guilhotina, o pai da química moderna: o católico Lavoisier(4); a República não necessitava de sábio, e assim é até hoje. 

Suponho que a esta altura seja difícil erradicar o boato, mas não contribuamos em perpetuá-lo. Quando o ouvirdes, basta perguntar, com Julián Marías(5): “e você, como sabe disso?”.

Stillman Drake(6), em sua obra “Galileo at Work: His Scientific Biography”, sugere que poderia ter sido pronunciada no caminho para sua casa em Arcetri, onde iria cumprir prisão domiciliar. Mas ainda é uma suposição. Ele procura apoiá-la em um quadro da Escola de Murillo em que, ao ser restaurado, foi encontrada uma cena de Galileu no cárcere apontando para a frase. Mas Galileu nunca esteve na prisão; isso parece mais uma fantasia do tipo “Código da Vinci”.



... NEM “IN DUBIIS LIBERTAS” É DE SANTO AGOSTINHO 


“In necessariis unitas, in dubiis libertas, in omnibus caritas” – no essencial, unidade; na dúvida [ou opinável], liberdade; em tudo, caridade – Como soa bem, certo? 

(...)

João XXIII referendou essa expressão na encíclica “Ad Petri Cathedram(8):
“Mas é preciso manter também a norma comum que, expressa com palavras diversas, se atribui a diferentes autores: nas coisas necessárias, unidade; nas duvidosas, liberdade; em todas, caridade(9)

Como se pode ver, sendo uma expressão católica, não lhe faz falta dar-lhe um verniz de patrística, que não tem. Como recorda João XXIII: “se atribui a vários autores”. Se tivesse havido uma citação recôndita nas obras de Santo Agostinho, a teria posto. 

E enfatizo a “expressão católica” porque as origens mais antigas são do teólogo luterano Rupertus Meldenius(10), em 1626; e se acredita que a popularização se deve ao puritano inglês Richard Baxter(11). Não tenho registro de uma citação católica anterior, mas é possível, porque minhas fontes são quase todas anglicanas.

Assim, se alguém souber de outras referências, ficaria grato que as compartilhasse. Mas com certeza, de Santo Agostinho sabemos que não é. 



Minhas pesquisas: Na verdade, há outras referências. 

Antes do Século XXI, o consenso acadêmico era de que a fonte da citação era provavelmente o teólogo luterano Peter Meiderlin (vide a nota 10). Um artigo de Henk Nellen(12), de 1999, mostrava que a frase havia sido usada anteriormente por Marco Antonio de Dominis(13), e isso derrubou mais de um século de consenso acadêmico. De Dominis, que fora Arcebispo de Split (Spalato, condado de Split-Dalmácia, na Croácia), a teria usado pela primeira vez em 1617, em sua antipapal “De Republica Ecclesiastica contra Primatum Papae”, onde aparece no contexto seguinte: 
“Quod si in ipsa radice, hoc est sede, vel potius solio Romani pontificis haec abominationis lues purgaretur et ex communi ecclesiae consilio consensuque auferretur hic metus, depressa scilicet hac petra scandali ac ad normae canonicae iustitiam complanata, haberemus ecclesiae atrium aequabile levigatum ac pulcherrimis sanctuarii gemmis splendidissimum. Omnesque mutuam amplecteremur unitatem in necessariis, in non necessariis libertatem, in omnibus caritatem. Ita sentio, ita opto, ita plane spero, in eo qui est spes nostra et non confundemur. Ita sentio, ita opto, ita plane spero, in eo qui est spes nostrae et non confundemur.”

De acordo com Joseph Lecler(14), a substituição de “dubiis” por “non necessariis” foi feita em círculos majoritariamente católicos, e teve o efeito de estender “a regra de Meldenius ... para muito mais do que apenas a necessária [para a salvação] e a não necessária [para a salvação]”, muito mais do que apenas os “artigos fundamentais”: “a tripla máxima... [assim] perdeu a sua matiz original protestante, a fim de estender a liberdade a todo o domínio das questões debatidas, duvidosas e indefinidas [não definidas pela Igreja]” (15). Mas Lecler estava apenas reproduzindo o velho consenso de que a máxima se originou em círculos proto-pietísticos, em vez de círculos católicos, ou seja, no círculo do luterano alemão Johann Arndt(16), precursor do Pietismo(17)


Notas:  
1. Há vários equívocos quanto à morte de Galileu, contudo não foi ele o cientista queimado vivo por sua concepção astronômica, mas Giordano Bruno (1548-1600), que havia sido condenado à morte por heresia nos tribunais da Inquisição. Galileu Galilei, na verdade, morre em sua casa em Arcetri (perto de Florença, Itália), rodeado pela sua filha Maria Celeste e os seus discípulos. Foi enterrado na Basílica de Santa Cruz, em Florença, onde também está Michelangelo
2. Cavalete ou ecúleo é um instrumento de tortura que consiste em uma tábua com roletes nas extremidades, onde a pessoa era amarrada e esticada. 
3. Giuseppe Marco Antonio Baretti, ou Giuseppe Baretti (1719-1789), foi um crítico literário, tradutor, poeta, escritor, dramaturgo e linguista italiano. Entre seus primeiros trabalhos há a “The Italian Library” (1757), um catálogo das biografias e das obras de diversos autores italianos. É nessa obra que aparece, pela primeira vez, a citação da frase atribuída a Galileu, mas jamais registrada em documentos precedentes (cf. aqui). 
4. Antoine-Laurent de Lavoisier (1743-1794) foi um químico, biólogo, filosofo e economista francês. Acusado de “traição”, por ser nobre e católico, morreu na guilhotina em 1794 (Cf. aqui). 
5. Julián Marías Aguilera (1914-2005) foi um filósofo e escritor espanhol, considerado o principal discípulo de José Ortega y Gasset (liberalismo) (Cf. aqui). 
6. Stillman Drake (1910-1993) foi um canadense historiador da ciência. Dedicou-se ao estudo da figura de Galileu, traduzindo para o inglês as suas obras, como, em 1953, o “Dialogo sopra i due massimi sistemi del mondo”, e divulgando o pensamento e a obra através de inúmeros estudos. Em 1984, recebeu o prêmio internacional Galileo Galilei, pela história da ciência italiana (cf. aqui). O livro citado foi publicado em 1978, pela Courier Corporation. 
7. Bartolomé Esteban Murillo (1617-1682) foi um pintor barroco espanhol, muitíssimo admirado e que teve seguidores denominados “Escola de Murillo”. 
8. Encíclica Ad Petri Cathedram“sobre o conhecimento da verdade, restauração da unidade e da paz na caridade”, escrita em 1959, por João XXIII. Cf. aqui
9. Unidade da Fé. n. 37, in Encíclica “Ad Petri Cathedram”
10. Rupertus Meldenius, ou Peter Meiderlin e ainda Peter Meuderlinus (1582-1651), foi um teólogo luterano (Cf. aqui). Em seu “Paraenesis votiva pro pace ecclesiae ad theologos Augustanae”, de 1626, escreveu: “Verbo dicam: Si nos servaremus in necessariis Unitatem, in non-necessariis Libertatem, in utrisque Charitatem, optimo certe loco essent res nostrae” (“deixe-me dizer: se pudermos manter nas coisas necessárias a unidade, nas coisas desnecessárias, a liberdade, em ambas a caridade, nossos assuntos estariam certamente em melhores condições”). 
11. Richard Baxter (1615-1691) foi um líder puritano inglês, sacerdote e escritor. 
12. Henk Nellen (1949) é um historiador holandês. 
13. Marco Antonio De Dominis (1560-1624) foi um arcebispo católico, teólogo e cientista dálmata, que se converteu ao Anglicanismo, escrevendo várias obras contra o Catolicismo, entre as quais: “Papatus Romanus”, “Scogli del naufragio Christiano”, Consilium Profectionis” e a maior delas, “De Republica Ecclesiastica contra Primatum Papae”, onde derramou todo seu veneno protestante. Em 1619, publica em Londres “Historia del Concilio Tridentino”, de Paolo Sarpi, à qual acrescenta um subtítulo anti-romano e uma dedicatória ao protestante rei James I. Esta “Historia”, depois, foi parar no Index. Em 1622, De Dominis voltou ao Catolicismo, apresentando-se diante do Papa Gregório XV, com uma corda no pescoço. E, em 1623, publicou “Sui Reditus ex Anglii Consilium”, onde se retrata de tudo o que escrevera em “Consilium Profectionis”, declarando de ter deliberadamente mentido em tudo o que havia escrito contra Roma. Contudo, após a morte do Papa, que lhe era amigo, voltou a falar heresias e foi novamente processado pela Inquisição. Morreu em 8 de setembro de 1624, antes da conclusão da instrução do processo, mas isso não parou a Inquisição, e a sentença foi lida diante de seu caixão: uma severa sentença post mortem ao rogo e à damnatio memoriae, baseada principalmente em documentos achados após sua morte. A execução se deu no dia 21 de dezembro de 1964, um dia após a sentença, quando seu corpo foi tirado do caixão, arrastado pelas ruas de Roma até o Campo de’ Fiori, onde foi queimado junto com todas as suas obras. (Cf. aqui.) 
14. Joseph Lecler (1895-1988) foi um jesuíta francês que defendia o ecumenismo. Escreveu o livro “Histoire de la tolérance au siècle de la Réforme”, em 1955, onde enfatizava a possibilidade de conviver com os hereges protestantes, “respeitando” as diferenças e focando “nos que nos une, e não no que nos separa”. Era amigo do herege Lubac. (Cf. aqui). 
15. Lecler, Joseph, in “À propos d'une maxime citée par le Pape Jean XXIII: In necessariis unitas, in dubiis libertas, in omnibus caritas”, Recherches de science religieuse (in French), 1961, pp. 549-560. Tradução minha. 
16. Johann Arndt (1555-1621) teólogo luterano alemão, precursor do Pietismo

17. Pietismo é um movimento de renovação dentro do Luteranismo, que surgiu no final do século XVII, defendendo a primazia do sentimento e do misticismo na “experiência religiosa”, em oposição à teologia racionalista. Foi uma reação ao dogmatismo da igreja oficial luterana. Entendiam que a reforma doutrinária iniciada por Lutero precisava ser seguida por uma nova reforma de vida. Em terras inglesas, o movimento se chamou Puritanismo, e surgiu antes, no século XVI. Entendiam que a Reforma Protestante na igreja inglesa não havia ido longe o suficiente, porque continuavam conservando muitos aspectos e práticas da Igreja Católica Romana


Fonte principal: http://infocatolica.com/blog/delapsis.php/1103210319-ni-leppur-si-mouver-es-de-galDemais fontes, vide as notas acima. 


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